O cineasta espanhol Pedro Almodôvar narra em um de seus filmes de maior impacto, A pele que habito, a história de um médico cirurgião que sequestra um homem, e por meio de sucessivas cirurgias o transforma, tornando-o fisicamente uma mulher. De um lado, o desejo do cirurgião; do outro, a impossibilidade de reação - a falta de alternativa do "cirurgiado". O filme de Almodôvar permite um comparativo com o processo comum que a sociedade vive no trato das questões de gênero e sexualidade.
Trata-se de uma história sem vilões nem bandidos, nos quais as motivações são diversas, mesmo inconscientes, com expectativas geradas de cunho social, político e histórico. De um lado, a opressão que determina a postura do ser submisso. Do outro lado, a subserviência por total impossibilidade de fazer valer suas vontades. Sendo assim, não resta alternativa que não a de assumir a performance do gênero imposto. Inicialmente prisioneiro por sequestro, torna-se prisioneiro do próprio corpo. Sua identidade é pulverizada no conflito entre corpo, genética, alma e meio social. Afinal, onde é guardada a Identidade? A pele que se habita representa o quê? É o conflito que se estabelece com os ditames das nomenclaturas do gênero, sexualidade e poder.
No fim da história, a redenção conseguida à custa da insubordinação às normas, às classificações, mas não sem o risco e o medo de partir para uma vida sem possibilidades de reconhecimento de sua condição “anormal”.
No processo de gravidez, tem-se algo parecido com o apresentado no filme de Almodôvar, gerado a partir da grande expectativa de definição do sexo biológico da criança. Com a confirmação do sexo do bebê, é montado o cenário para que aquela vida encontre o ambiente propício para o afloramento de sua personalidade, masculina ou feminina. Assim, são definidas as cores, os objetos e os brinquedos. É todo o preparativo “pré-cirúrgico”.
Neste processo de construção, mesmo em famílias ditas modernas e progressistas, tem-se ainda o direcionamento do que se espera dos gêneros. Para o homem, os brinquedos exploram o mundo exterior e competitivo com carros, armas e futebol. Para a mulher, os instrumentos de um mundo de recato e do lar, com bonecas, panelas e cosméticos. Os eventuais desvios de desejos são reprimidos ainda cedo, dentro de uma visão dominante, machista e heteronormativa. É comum a repreensão diante do choro masculino, a afirmação contundente de que choro é coisa de meninas. Para as meninas, futebol é coisa de homem. E assim a pele habitada, de modo imposto, toma a frente no processo de formação do Ser, sendo esta a primeira cirurgia a qual somos submetidos, para implantação involuntária de um gênero.
Assim, o espírito recém-nascido tem seus primeiros passos aprisionado em um corpo do qual esperam respostas que talvez correspondam perfeitamente aos seus anseios. Porém, existe a possibilidade de isso não acontecer. Diante de tal fato, existem dois caminhos a percorrer: ou vivem um personagem em desconforto para atender às exigências sociais, ou vivem sob o rótulo de desviados, problemáticos e patologizados. Em ambas as situações, é inevitável o conflito íntimo, gerador de Ser adoecido. Considerando-se o processo comum de formação do ser humano, os dois processos são adoecedores, pois a “anormalidade” encontra barreiras de toda ordem.
Tudo isso acontece porque, para uma compreensão de novas possibilidades do Ser, é necessário a desconstrução de conceitos e de padrões; é necessário um novo pensar. Esse novo pensar exige sacrifícios, já que o próprio processo de educação é regulado por classificações que nos encaminham sem inquietações para o modo de ver e ser, produzindo subjetividades que são tomadas por normas.
Paradoxalmente, após a “cirurgia” realizada, quando identificado o processo de adoecimento, decorrente da incompatibilidade entre os desejos projetados dos pais e da sociedade do qual se faz parte, a angústia de não se reconhecer, via de regra a “anormalidade” causadora da doença, é de total ônus daquele que não teve a possibilidade de escolha.
Daí, não raro, a população transexual permanecer enrustida, de modo dissimulado, para conseguir interagir dentro da sociedade. Essa inserção tem diversas razões: variando desde a oportunidade de emprego e de integração social, até de cultura e de afeto. Tais máscaras sociais, às vezes, perduram por toda a vida, escondendo a persona que não se sente representada pela pele que habita - em uma performance forçada.
Assim, quando a questão da transexualidade é pensada em nível de intervenção dos profissionais de saúde, o que é necessário e emergente a ser percebido, dentro do contexto terapêutico, é que falar sobre gênero não significa falar sobre masculino ou feminino ou não-binário; nem sobre hetero, bi ou homossexualidade. Pensar sobre gênero é pensar sobre as relações culturais, sobre os desejos. Na desconstrução necessária, deve-se perceber que não existe determinismo sobre o comportamento do homem e da mulher, e que as regras impostas, como se fossem condições inatas biológicas, existem por força de ideologias rasas. Gênero e sexualidade são dinâmicos e flexíveis, constroem-se ao longo do tempo e não podem são impostos, como feito pela sociedade. O Profissional da saúde mental deve pensar, e fazer pensar, de modo plural.
Compilado do trabalho publicado na Universidade Unyleya,2016: PONTES, Claudia; Transexualidade – Quando a classificação desclassifica.
Comments